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Homem

01 jun 2020

Milena Félix

A primeira vez que o vi, ele se parecia com algo com que eu tinha de me acostumar. Não era familiar de nascença, mas era quase. Não era como eu, eu precisava confiar, porque não podia entender. Foi a primeira vez em que tive que confiar.

Era, ao mesmo tempo, alguém que gritava e manipulava, que me deixava com muita raiva e fazia meu rosto queimar. Ele era quem me fazia engolir todos os meus sentimentos e acumular o ódio. Ele motivou todas as minhas escolhas, me ensinou a sempre dar conta sozinha e a nunca pedir ajuda. Era alguém que eu não conseguia ver como igual. Era diferente e inimigo. Eu achava que ele era frio e que não sentia como eu. Eu não entendia bem o que significava ser humano, mas ele com certeza não era um.

 

 

 

 

Ele nunca pedia desculpas, mas sempre quando passava dos limites, ficava doce e falava manso, me mimava e parecia entender. Mas eu sabia o quanto aquilo era artificial. Eu nunca confiei nele. Foi o que aprendi na primeira vez e reproduzi para todas as outras: não confiar em gente daquele tipo. E eu nunca mais, ou seja, de fato nunca, confiei. Mas, apesar de tudo, ele dizia de tempos em tempos que me amava. Eu nem ouvia. 

Da segunda vez que o vi, eu tinha passado 10 anos esperando alguém diferente chegar. Alguém que me abraçasse e dissesse que eu era especial. Alguém que ouvisse todas as histórias ruins que eu tinha pra contar e que colocasse curativos em cada uma delas. Queria confiar o suficiente em alguém para mostrar todo o amor que eu tinha no peito. Quando eu finalmente o vi, se passaram duas coisas na minha cabeça: a primeira era que ele era igualzinho ao meu cantor preferido, e a segunda era que eu tinha certeza que não ia dar certo.

 

Alguma sabedoria lá no fundo queria me alertar. Mas eu não era capaz de fugir. Eu achava que meus quebrados tinham me feito forte, mas no fim das contas, eu estava só quebrada demais. E ele percebeu isso no instante em que me viu.

A segunda vez que eu o vi foi, de certa forma, muito pior que a primeira. A primeira coisa que ele fez foi se tornar mais íntimo que da primeira vez. Ele era a única coisa na minha vida. A segunda coisa que ele fez foi se transformar na única pessoa que me era íntima. Mais que isso, ele se transformou na única pessoa que eu tinha por perto. A única coisa na qual eu pensava, meu único sonho à noite, o único cheiro que eu sentia, a única coisa que me fazia levantar pela manhã. Eu tinha certeza que tinha encontrado o que buscava há 10 anos. Porque ele era muito bom e ter apenas ele na minha vida, fazia toda ela ficar muito boa.

Mas eu não tinha aprendido direito a lição da primeira vez: eu confiei. Confiei em quem não devia e deixei de confiar em todos os outros em quem eu devia confiar. A terceira coisa que ele fez foi me ensinar a fazer o que ele queria que eu fizesse e a não fazer o que ele não queria. Eu passei a falar só com aqueles que me eram indicados, a conseguir somente aquilo que não o fazia menor, a escolher só o que ele também escolhia. Logo, ele também me ensinou que uma das coisas que eu não podia fazer, era questionar qualquer coisa que ele fizesse.

Bem rápido, ele passou a fazer coisas más comigo. E eu já tinha aprendido a não reclamar, nem lutar, nem fazer parar. E aí ele não fez mais nada de novo. Só que as coisas boas iam diminuindo e as coisas ruins aumentando a cada dia. Eu fiquei olhando pros olhos dele enquanto ele bebia o meu sangue como um vampiro durante dois anos. A última coisa que ele fez foi sair de uma vez quando todo o meu sangue tinha acabado. Ele deixou minha carcaça no chão, chutou com força e me derrubou, morta, de um penhasco muito alto. Subiu cada vez mais para o topo, enquanto eu o observava, morta e caída, em pedaços, querendo que ele voltasse.

Das próximas vezes que eu o vi, foram rápidas e sem nem 1% de confiança. Eu não respeitava nem considerava qualquer bondade vinda dele. Eu o usei e odiei. Eu passei a vê-lo em outras pessoas que eram tão parecidas com ele, só que não eram más. Eu descontei todo o ódio em pessoas que não eram ele. Mas no fim de tudo, eu não tinha ódio. Eu tinha quebrados, veias vazias e um fundo do poço. Eu não tinha mais nada. Foi por isso que eu disse para um senhor na semana passada que eu não podia confiar nele.

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