Pipa
17 mai 2020
Milena Félix
Há momentos em que surge um incômodo leve, tímido, lá na parte duvidosa da intuição, de que eu talvez não esteja em mim mesma. Eu chego a quase ignorar, porque, o tempo todo, eu devo estar cuidando das coisas, imersa, me preocupando com elas, correndo atrás de coisas que não sou eu mesma. Mas, por algum motivo, não consigo ignorar e decido, como se fosse uma questão de orgulho, parar tudo até que eu me recupere.
Está claro que não é para eu me preocupar com a não-consciência. Nós não estamos conscientes. Normalmente, nenhum de nós está. A vida, às vezes, me parece com uma esteira na qual estamos correndo sem parar. E a esteira apresenta prêmios na outra ponta para que alcancemos - isso nos faz esquecer de onde estamos e de que nunca vamos chegar. E é disso que a vida é feita. Sempre novas metas, dormir tarde, acordar cedo, resolver problemas. Ser pais. Simplesmente, não dá pra acordar.
E, em geral, a gente fica muito irritado quando o ciclo é interrompido. Quando alguém morre e a gente tem que parar pra pensar na vida. Quando a gente perde o emprego e vê que a estabilidade não significou nada. Quando alguém perto de nós não quer correr na esteira com a gente.
Mas esse looping me incomoda. O dia me puxa um fio de cabelo e a pequena dor me faz perceber que alguma coisa está errada. É um não-pertencimento. Sabe quando a gente sente que não pertence a um grupo diferente do nosso? Ou que não pertence a grupo nenhum. Desse jeito, eu sinto que já não pertenço a mim mesma. E isso me dá um susto e, imediatamente, ligo todos os meus mecanismos de resolução de problemas urgentes. Não dá pra ficar assim: fora da sala em que as decisões sobre mim estão sendo tomadas. No automático. Me esquecendo de tudo o que já pensei sobre mim.
Quase sempre, eu pego minha bicicleta velha, de uns 25 anos de idade, e vou dar uma volta curta. O caminho também quase sempre é o mesmo. Eu pedalo, sem ver, para o mesmo lugar que cheira à vila em que cresci, e que nem existe mais. A menina de 4, 6 e 10 anos que vivem dentro de mim vêm e me dão um abraço. Eu nem me lembro delas, mas me sinto abraçada. Eu acelero bastante na descida, e quando não posso mais pedalar, me levanto na bicicleta e a deixo descer comigo em cima. É a forma mais bonita que conheço de escrever poemas.
Quando já estou com o coração e a mente acordados de novo, vejo as flores brancas na beira de uma estrada, que vai para uma fazenda de alguém que não conheço. Montes de flores. Eu mesma também broto néctar enquanto passo por elas. Eu subo o olhar. O rosa no céu sempre me faz lembrar de respirar fundo, e de que é muito bom querer continuar respirando.
Mas quando a melhor parte chega, eu finalmente fico pronta para a volta. Voltar para casa e para mim mesma. Eu adoro quando vejo pipas voando. As pipas me lembram o céu lindo que existia anos atrás. Me lembra a viagem que fiz quando tinha 7 anos. Me lembra as aventuras com os meninos: pegar bambu para fazer as nossas próprias pipas. Eu amo que ainda existam pipas no céu. Eu amo que o tempo, para alguns, é o mesmo que para mim foi, muitos anos atrás. Amo a possibilidade de o tempo não ter passado e ainda existir, só que em algum lugar que eu com certeza não conheço. O que me interessa no tempo não é o passado, nem as dores dele, mas é a consciência que deixei nele. Eu vou até lá, na pipa e em mim, e trago a consciência de volta. E ela vem com tudo o que eu já havia acrescentado nela dos 7 anos até aqui.
Quando volto para casa, e a noite vem comigo, eu já quebrei todo o ciclo. Sequer existe esteira. Joguei tudo fora. Coloquei uma pipa no lugar. Me sento e escrevo histórias, tento guardar tudo aquilo pelo máximo de tempo possível. Mas a vida é móvel, ela não me deixa ficar. Ela traz o céu escuro e os sonhos da noite interrompidos por uma manhã corrida. Mas não pense que foi em vão. A cada nova visão do céu rosado, novas experiências vêm com a consciência. Ela sempre é mais rica, porque eu a enriqueci, vez por vez.
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